segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Nas linhas de frente - Bruno Volski http://discipulodesi.blogspot.com/

Quando mencionaram violência sexual já me bateu um mal estar mesclado com tristeza, nada de raiva, nem muitas palavras na mente, só esse sentimento. Esfreguei a mão na cabeça enquanto contraria a musculatura da testa, formando algumas rugas, os olhos se detinham fechados durante a ação.

Ao falarem a idade da criança eu fechei a mão com chumaço de cabelo preso entre os dedos, e numa inspiração profunda puchei enquanto fechava os olhos com mais força desfazendo as rugas da testa.

Era a reunião de sexta-feira no hospital, uma supervisão onde discutíamos os casos atendidos no projeto de psicologia hospitalar. Sempre que não tínhamos aulas de patologia na sexta íamos nessa supervisão, eu e o grande amigo Marco, e quase sempre em silêncio, produzido pela vergonha e insegurança de estar em um campo de estudo e trabalho um pouco diferente do nosso e entre tantas mulheres.

A descrição do caso ia revelando nuances cada vez menos coloridos, até compor um quadro horrendo, um borrão cinza. Sua constituição física, já comprometida por algumas debilidades motoras, alem de algum grau de autismo, sofreu, mais que os terríveis abusos sexuais, padeceu de mais violência física, mão e pé quebrados, marcas antigas de queimadura de cigarro, uma contusão facial muito provavelmente produzida por soco. O quadro inspirava profundo cuidado da parte médica pois havia sérios riscos de morte, e um cuidado não menos intenso era demandado dos psicólogos e futuros psicólogos engajados no trabalho.

Mãe conivente com as ações do padrasto. O caso havia sido descoberto por uma assistente social que desconfiava das historias mal contadas pela mãe sobre os ferimentos do garoto.

A face se contraia em uma expressão de desanimo, uma respiração profunda como se uma canseira se apoderasse de mim, uma canseira que não era física, era um desgaste por tantas atrocidades cometidas pelos seres humanos. Não havia uma gota sequer de raiva, nada, apenas um padecimento silencioso, um pesar muito grande por toda a humanidade.

A reunião seguiu, mais alguns casos foram descritos, mais algumas perturbações, mas nenhum havia provocado impressão tão forte quanto a primeira.

Passaram-se 6 dias até que voltássemos às atividades do projeto. Após uma aula de conteúdo desnutrido, vestimos nossas armaduras brancas e transpusemos um pouco de nossos medos, encorajando-se mutuamente, e eu e o Marco seguimos à sala da psicologia hospitalar. Ali a coordenadora sugeriu que visitássemos a criança do terrível ocorrido. Eu e o Marco trocamos um olhar significativo, como se confirmássemos que nossos pentes estavam cheios e o gatilho devidamente destravado para uma missão de assalto, tensos, amedrontados, mas convictos.

O campo era totalmente desconhecido, nem mesmo como chegar na uti pediátrica sabíamos, nem tão pouco se poderíamos entrar.

Depois de alguns corredores chegamos à entrada. Abri vagarosamente a porta, olhando cuidadosamente, reparando se estávamos sobre a mira de alguém e fomos adentrando vacilantes, -e agora torno a narrativa, dos aspectos subjetivos, no singular pq não posso dizer o que havia no universo particular do meu amigo- temendo ser alvejado por alguma reprovação.

Caras inéditas vestiam um jaleco diferente, azulado e de conformação distinta do que trajávamos. Perguntei se precisaria de um daqueles, e me indicaram o armário onde conseguiríamos o par.

Com as mãos devidamente lavadas, inquirimos sobre qual sub-aposento estaria o pequenino. No minúsculo módulo de tratamento estavam algumas pessoas: uma senhora sentada próximo ao leito, dois médicos e talvez uma aluna de anos avançados.

Nos postamos um pouco afastados, temia alguma repressão, mas nem nossos nomes quiseram saber, era como se não estivéssemos ali para eles.

Dali pude ver a criança e...

Meu Deus...

Uma respiração profunda, enquanto sorvia o ar, fechei os olhos com força por alguns segundos, poucos pensamentos se processavam enquanto uma tristeza profunda e desfocada pressionava o peito.

Uns olhos muito expressivos, de um vigor contrastante com sua frágil constituição física, comunicava a sua profunda insatisfação com os procedimentos médicos. Sua mãozinha buscava, em um esforço hercúleo, retirar a mão do medico que tentava uma ausculta em seu abdome, o outro doutor imobilizou o significativo esforço do pequeno, pareciam dois gigantes diante da pequenez da criança. Seus leves quinze quilos denotavam desnutrição, mais um nuance de crueldade, cuja sonda parenteral tentava contrapor.

A criança gemia em seu esforço contrariado, os médicos pouco falavam, a frialdade dos procedimentos talvez tentasse proteger os sentimentos daqueles homens, que apesar de grandes, e de armaduras brancas reforçadas por outras azuis, eram possuidores de sentimentos, duvidas, expectativas, angustias...

Observei mais atento os equipamentos, seguindo as mangueiras que partiam do pequenino até as maquinas ainda desconhecidas pra mim. Nessa observação notei que algum coração sensível por ali estivera, e pacientemente materializou seus bons sentimentos em delicados móbiles feitos com alguns materiais do próprio hospital. Talvez não esteja certo, mas creio que não teriam sido aquelas mãos de gigantes de mascaras apáticas a fazê-los.

Enquanto aguardava a saída dos médicos, na batalha em que me encontrava, a trincheira foi se enchendo de lama, e a umidade foi infiltrando no coturno, gelando pés cansados, de soldado acuado há meses, que começava a se questionar o porquê do absurdo hediondo de combater, o porque da violência, e o porque de responder com ainda mais violência. As palavras de algumas das psicólogas me vieram em mente: “a morte seria pouco para um ser desses” se referindo ao padrasto, e aquilo foi como um vento frio no meu posto lamacento, uma tristeza desolada me cansou ainda mais. Putz, elas são psicólogas, talvez tivessem por dever crer na capacidade de transformação do sujeito, no entanto estavam reivindicando a pena capital para o individuo e sugerindo a tortura, a total desistência da possibilidade de alteração, em que toda a pedagogia é enterrada, sepultada, e em lapide fria grafada em letras raivosas de vingança: aqui jaz toda a humanidade.

Emudecido em minhas reflexões arfantes, me deparai com a ausência dos médicos e a necessidade de fazer algo. Eu estava frente a frente à senhora postada na cadeira para acompanhantes, fronteiriço o leito se estendia entro nós. Cogitei sobre a possibilidade de ser a mãe da criança, mesmo sabendo da conivência da mãe nenhum sentimento de ódio me veio, pelo contrario, padeci da enfermidade mental da senhora, sem os preconceitos da culpa. Creio que culpar seja uma forma limitada e limitante de observar a causalidade dos fenômenos, creio que um universo mais abrangente desponta quando atribuímos responsabilidade e não culpa; a culpa é imbuída de preconceito, é estática e fatalista, geradora de repressão e ódio, mas quando atribuímos a responsabilidade, então a ação é passível de compreensão e, assim, de transformação, validando métodos pedagógicos, validando acreditar na humanidade, validando todo o esforço por melhorar-se e melhorar o mundo. Imbuído desses valores filosóficos me dirigi polidamente à senhora, questionando como ela estava. Claro que a resposta foi uma afirmação categórica sobre estar bem, automática, não havia ali vinculo nenhum de confiança, e por traz dessas afirmativas robóticas estão arames farpados, protegendo o sujeito do outro desconhecido. Questionei se ela seria a mãe da criança, e a resposta foi não, ali estava eu diante da avó, e meu suposto engano me garantiu reflexões pra mim muito acertadas.

Modifiquei meu tom de voz, para algo mais amoroso e gentil e me dirigi à criança, sem saber se minhas palavras seriam compreendidas, mas consciente de que alguma parte da comunicação seria feita, seja pela tonicidade vocal, seja pelas emanações psquicas, ou pelo meu acanhado gesto de carinho que estava ensaiando. Estendi a mão até os cabelos curtos e de diminutas voltas concêntricas decididas do pequenino. Dirigi algumas palavras de estimulo, externei um sorriso limitado, que surgiu sincero, por estarmos ali, todos juntos reunidos, mesmo que sob circunstancias tão sofríveis, um acanhado sorriso por compreender ali estar um espírito em potencialidades infinitas, em um momento de experiência, de lições complexas para todos, mas em estado transitório da caminhada, abstrações semelhantes se formaram sobre os agressores, e uma confiança ainda maior na necessidade de sermos pedagogos humanistas e não chacais vingativos, vigorou em minha mente, e um pouco do desgosto deu lugar a necessidade de trabalho em catalise à transformação do sujeito, trabalho na compreensão da mente inquieta do seres humanos, trabalho em serviço ao próximo.

Um tanto acanhado, sem roteiro algum a seguir, resolvi me despedir. Antes perguntei se teria algo que eu pudesse fazer pela senhora, ela respondeu que não, que apesar de suas dificuldades de estar ali a algum tempo, sem estrutura de alojamento, não havia nada que eu pudesse fazer. Facilitei para que ela falasse um pouco mais, ela disse de suas roupas que eram lavas ali mesmo, do desconforto da cadeira, da sua triste surpresa em vir de tão longe, Curitiba, para enfrentar tal situação. Arrefecido sua fala, me despedi dela e do pequenino, em palavras ternas...

Ao começar me afastar, algo inesperado pra mim aconteceu.

Por entre a pequena grade de tubos de aço em paralelo que circundava a cama, o pequenino estendeu seu delicado bracinho em direção a minha mão; eu aproximei-a, facilitando a sua ação, e em um gesto que creio não se apagará da minha mete, ele abarcou meu indicador com toda sua pequena mão... olhei para o alto, em respiração profunda, tentando conter as lagrimas que eram anunciadas pelos nós na garganta.

Segundos depois ele soltou meu dedo, e dispersou seu olhar. Olhei para o Marco, que ali estivera todo o tempo como soldado cobrindo a retaguarda para o avanço mais seguro, garantindo que eu transpusesse meus medos em ambiente tão desconhecido e situação tão penosa.

Seguimos, sem muitas palavras...

Em casa as lagrimas se fizeram abundantes...

Um comentário:

  1. emocionante é pouco...
    q vc seja esse desbravador de emoções cara, e q a frieza do hospital e dos que trabalham nele não esfriem a sua vontade d causar bem as pessoas, não só de curá-las

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